O Panorama desse mês se dedicará a destrinchar um tema crucial no momento: as tarifas de importação anunciadas pelo governo Trump. Você entenderá o contexto econômico em que essas ideias surgem, e quais são as consequências prováveis de uma expansão de tarifas e retaliações que vem sendo chamada de Guerra Comercial.
Entendendo o papel do Dólar
Os Estados Unidos ocupam uma posição única na economia global por deterem o dólar, a moeda de reserva internacional. Isso significa que a maior parte das transações comerciais e financeiras entre países ocorre em dólares, consolidando sua importância no comércio global e conferindo aos EUA um enorme poder econômico e geopolítico.
Um exemplo desse poder é a capacidade de utilizar o dólar como ferramenta de sanção. Os EUA podem congelar ativos denominados em sua moeda e excluir adversários do sistema financeiro global. Foi o que ocorreu recentemente em resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia, quando Washington bloqueou reservas internacionais russas e restringiu seu acesso ao sistema SWIFT, fundamental para pagamentos internacionais. Dessa forma, os EUA conseguem impor severas penalidades econômicas sem recorrer ao uso direto da força militar.
Outro exemplo da força do dólar, é que a alta demanda por dólares para transações internacionais faz com que governos, empresas e investidores optem por manter uma parte significativa de suas reservas na moeda americana e em ativos dos EUA, como títulos da dívida pública. Esse fluxo constante de capital reduz o custo do endividamento do país, pois há sempre demanda por seus títulos, permitindo que os EUA financiem déficits a taxas mais baixas do que outras nações.
Com acesso barato ao crédito, os americanos podem consumir mais do que produzem, resultando em déficits comerciais. Quando um país gasta mais do que arrecada internamente, precisa suprir essa diferença por meio da importação de bens e serviços. No caso dos EUA, a forte demanda global por dólares e ativos americanos facilita esse processo.

No entanto, esse privilégio também traz consequências negativas, o que foi antecipado na década de 1960 no que ficou conhecido como o Dilema de Triffin. O status de moeda de reserva mantém o dólar sobrevalorizado, pois a alta demanda internacional por dólares faz seu preço subir em relação a outras moedas. Isso torna os produtos americanos mais caros no exterior, reduzindo a competitividade das exportações e aumentando a dependência de importações. Como resultado, os EUA acumulam déficits comerciais constantes e suas indústrias perdem espaço para concorrentes estrangeiros, levando à desindustrialização. Além disso, a necessidade de fornecer dólares ao mundo obriga os EUA a manter déficits fiscais e em conta corrente, impulsionando o crescimento da dívida pública.

O sonho americano é ter todos os benefícios de possuir a moeda de reserva global sem sofrer os impactos negativos desse papel. Esse anseio tem se refletido diretamente na formulação das políticas comerciais recentes, especialmente na adoção de tarifas de importação como estratégia de reequilíbrio econômico.
O Contexto geopolítico das Tarifas
Há algum tempo, observamos uma tendência de desglobalização, na qual os ganhos econômicos do comércio vêm sendo preteridos em favor da segurança no abastecimento da economia. Esse movimento ganhou força nos últimos anos, impulsionado pela guerra comercial entre Estados Unidos e China, pela crise logística e das cadeias produtivas durante a pandemia e pela guerra da Rússia contra a Ucrânia, que ameaçou deixar a Europa sem suprimento energético adequado.
Nesse contexto, surgiram os termos nearshoring e friendshoring, que se referem à preferência por negócios com países próximos e aliados, mesmo que isso implique reduzir o comércio com nações de produção mais barata, como a China.
A volta de Trump intensificou a agenda de desglobalização, mas parece abandonar a lógica do nearshoring e friendshoring em favor do reshoring, ou seja, o retorno da produção para os Estados Unidos. Isso ajuda a explicar seu ímpeto por elevação de tarifas, atingindo até mesmo parceiros históricos, como México e Canadá.
O raciocínio por trás dessa política não é apenas econômico, mas também geopolítico. A ascensão industrial da China e seus persistentes superávits comerciais com os EUA são percebidos como uma ameaça ao domínio econômico americano. Além disso, a dependência de cadeias produtivas estrangeiras, especialmente em setores estratégicos, expõe os EUA ao risco de desabastecimento em meio a disputas geopolíticas. Nesse contexto, o protecionismo ganha força como uma forma de reequilibrar o jogo global e proteger a autonomia produtiva americana.
A consequência, no entanto, é a amplificação dos efeitos econômicos negativos que a desglobalização já carrega. A lógica do reshoring, significa menor potencial de crescimento e deterioração das economias aliadas. Em suma, tem um efeito econômico desastroso e, no limite, esse movimento leva a um Ocidente mais fragmentado e vulnerável, sendo uma decisão que pode trazer efeitos contrários aos desejados.
Para entender melhor os impactos dessas medidas, é essencial analisar seus efeitos diretos na economia americana e global, observando como as tarifas influenciam os preços, o consumo e o crescimento econômico.
Destrinchando os efeitos econômicos das tarifas
A teoria econômica indica que tarifas de importação reduzem a oferta de produtos e aumentam os preços no curto prazo. Ou seja, se as medidas forem mantidas, o cenário provável envolve uma alta inicial da inflação, seguida por desaceleração econômica nos Estados Unidos.

A retórica utilizada pelo presidente americano é a de que os exportadores estrangeiros absorveriam integralmente o custo das tarifas, mas isso não se sustenta na prática e mostra uma racionalidade de conveniência: quando as regras econômicas não apoiam sua narrativa, Trump escolhe ignorá-las
Acontece que, grande parte do efeito imediato das tarifas recai sobre o consumidor americano, que passa a pagar mais caro por bens importados, pressionando a inflação e comprometendo o poder de compra. O mercado percebeu isso e precifica o risco crescente para a economia americana, que se reflete na queda na bolsa de valores.

Ainda há no mercado a esperança de que Trump recue nas tarifas – tese válida, já que foi visto um movimento parecido em seu primeiro mandato como presidente. No entanto, a probabilidade desse cenário parece estar diminuindo, já que os desdobramentos das suas medidas resultaram na escalada do tom dos países afetados. México, Canadá, União Europeia e China já anunciaram retaliações, aumentando o risco de um ciclo vicioso de restrições comerciais e represálias. O resultado imediato é a deterioração do ambiente de negócios, aumento da incerteza e amplificação da volatilidade dos mercados financeiros.

Em resumo, a esperança de que tarifas sobre importações seriam capazes de reequilibrar o jogo geopolítico e manter a soberania do dólar encontra-se em risco. A estratégia de Trump, ao atingir aliados, tem gerado retaliações que podem escalar para uma verdadeira guerra comercial.
Com um cenário cada vez mais tenso no comércio global, os impactos das tarifas se estendem para além da economia, afetando diretamente as relações geopolíticas e alterando o equilíbrio de poder entre os blocos econômicos.
Adicionando a Geopolítica na equação
Enquanto isso, a condução das negociações entre Rússia e Ucrânia expõe um objetivo claro: encerrar o conflito rapidamente para capitalizar politicamente sobre a pacificação. No entanto, a pressa pode gerar consequências duradouras. Uma Ucrânia enfraquecida e uma Rússia fortalecida são cenários prováveis, podendo resultar em um novo conflito nos próximos anos – possivelmente sob outra administração nos EUA.
Paralelamente, a Europa parece despertar para essa nova realidade. O temor de um abandono por parte de seu principal aliado pressiona o bloco a acelerar o rearmamento e reduzir sua dependência da defesa americana. Isso implica maiores gastos públicos e uma trajetória crescente de endividamento, adicionando mais um vetor inflacionário ao cenário global.
Nesse ambiente, ativos descorrelacionados ganham relevância. Ouro e Bitcoin, por exemplo, continuam alternativas para períodos de incerteza. Para investidores de longo prazo, uma continuidade na correção nos preços das ações americanas pode representar uma oportunidade de entrada, mas a cautela é essencial diante da imprevisibilidade do cenário.
A maior economia do mundo segue sem uma direção clara e projeta instabilidade nos mercados globais. A ausência de sinais de recuperação a curto prazo exige que nos preparemos para um período de turbulência.
Saiba mais:
- hudsonbaycapital.com/documents/FG/hudsonbay/research/638199_A_Users_Guide_to_Restructuring_the_Global_Trading_System.pdf
- Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo - KINEA
- Comitê de Alocação Global | Março 2025
Os efeitos no Brasil
O Brasil enfrenta um dilema ao se posicionar diante da intensificação dos conflitos comerciais. A dependência econômica do nosso País em relação aos EUA é maior do que o inverso: enquanto os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial do Brasil, ocupamos apenas a 15ª posição na lista de parceiros americanos. Esse desequilíbrio reduz significativamente nosso poder de barganha, tornando retaliações tarifárias uma estratégia pouco eficaz na negociação com Trump.
Embora o Brasil mantenha tarifas elevadas sobre diversos produtos, os EUA registram superávit comercial em relação ao nosso país. Conforme discutido ao longo deste relatório, a busca de Trump por reequilibrar déficits comerciais tende a direcionar sua política para países onde os EUA possuem déficits substanciais. Isso pode reduzir o ímpeto do governo americano em adotar medidas drásticas contra o Brasil.
Na perspectiva do nearshoring e friendshoring, o Brasil poderia, em tese, se beneficiar da reorganização das cadeias produtivas globais. Caso consiga se posicionar como um parceiro confiável e neutro, poderia atrair investimentos tanto dos EUA quanto da China, reforçando seu papel estratégico no comércio internacional.
Entretanto, se a guerra comercial se intensificar, os impactos para o Brasil tornam-se incertos. Setores estratégicos podem ser afetados por disrupções no comércio global, tornando essencial a diversificação de parcerias comerciais.
Neste momento, reforçar acordos multilaterais, especialmente o do Mercosul-União Europeia, se mostra uma estratégia fundamental. A atual tensão entre os europeus e os EUA pode abrir uma janela de oportunidade para que o Brasil avance nessas negociações e fortaleça sua posição no comércio global.
Saiba mais: